José Eduardo Cardozo - O mensalão existiu
VEJA
16/02/2008
O novo secretário-geral do PT reconhece a existência
de esquema de cooptação de políticos e diz que o partido
precisa retomar a bandeira da ética
Otávio Cabral
Ana Araújo
"Vou ser claro: teve pagamento ilegal de recursos para políticos aliados? Teve. Ponto final. É ilegal? É. É indiscutível? É. Nós não podemos esconder esse fato da sociedade"
O deputado José Eduardo Cardozo assumiu a secretaria-geral do PT, o segundo posto mais alto da hierarquia do partido – cargo que já foi ocupado por Silvio Pereira, o Silvinho, uma das estrelas do escândalo do mensalão. Nas últimas eleições internas do PT, José Eduardo disputou a presidência com um discurso crítico em relação ao comportamento e às atitudes dos atuais comandantes da legenda. Prometia que, se eleito, promoveria uma faxina ética no partido. Foi derrotado. Ex-integrante da CPI dos Correios, o deputado acompanhou de perto as investigações que revelaram os métodos utilizados pelas lideranças petistas para comprar apoio político no Congresso. Por isso, ao contrário dos seus colegas de partido, talvez ele seja o único a reconhecer a existência do mensalão e a defender a punição dos envolvidos. O deputado assume o cargo que exercerá ao lado de figuras que prometia combater. Na semana passada, José Eduardo Cardozo falou a VEJA sobre o desafio de fazer uma depuração ética no PT e sobre o paradoxo de ter ao lado companheiros que colaboraram para levar o partido ao fundo do poço.
Veja – O senhor foi candidato à presidência do PT com a proposta de refundação do partido, de expurgar os corruptos e as práticas de corrupção. Dois meses depois de ser derrotado, assume a secretaria-geral do partido presidido por um aloprado (Ricardo Berzoini) e com influência de mensaleiros. Como explicar essa contradição?
José Eduardo Cardozo – Não há contradição. A executiva do PT é formada proporcionalmente por todas as correntes. A chapa pela qual eu fui candidato, a Mensagem ao Partido, chegou em terceiro lugar e ficou com parte do comando. Garanto que todos os membros de nossa chapa no diretório nacional seguirão nossas propostas, nossa linha de conduta. Vamos defender a instituição do código de ética, o resgate da democracia partidária e a depuração ética do partido. Só aceitei assumir a secretaria-geral com esses compromissos.
Veja – Mas é possível conseguir isso com o partido ainda dominado pelo Campo Majoritário dos "aloprados"?
José Eduardo – Espero que sim. Há uma percepção hoje em todas as correntes do PT de que é necessário resgatar os compromissos éticos históricos do partido.
Veja – O seu nome chegou a ser cogitado para ocupar a relatoria da CPI dos Cartões. O senhor acha correto uma investigação deixar de fora os gastos pessoais e familiares do presidente Lula e do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso?
José Eduardo – É inaceitável um tipo de acordo que implique cumplicidade com o ilícito. Aliás, acordos na vida política devem ser feitos à luz do dia e dentro de parâmetros éticos. Mas é importante frisar que em assuntos que envolvam segurança de estado e de autoridades há que ter muita cautela para que, no calor de uma disputa política, não se criem problemas para o país. Tudo deverá ser investigado, mas o que trouxer riscos para a segurança do estado não poderá ser divulgado publicamente.
Veja – Vamos analisar, então, uma questão prática. A ex-ministra da Igualdade Racial Matilde Ribeiro deixou o cargo depois da revelação sobre seus gastos irregulares com o cartão corporativo. Mas o PT, em vez de repreendê-la ou abrir um processo interno, soltou uma nota atribuindo sua saída ao preconceito das elites. Não está na hora de o PT parar de passar a mão na cabeça de seus aloprados?
José Eduardo – Não quero analisar situações individuais, pré-julgamentos são sempre ruins. Mas qualquer desvio ético que um petista cometa tem de ser rigorosamente punido. Nós temos de ser mais duros com nossos militantes e dirigentes do que somos com nossos adversários. Um partido que entende que a ética é indispensável para a construção da democracia, como nós sempre sustentamos, não pode defender a ética para fora e não colocar a ética para dentro. Em qualquer escândalo, denúncia ou suspeita, o PT tem de ter uma postura ativa. Seja para absolver, seja para condenar. Não pode se omitir, não pode passar a mão na cabeça.
Veja – Mas, no caso dos cartões, o PT não está passando a mão na cabeça?
José Eduardo – Não. A intenção clara do PT é que qualquer situação que envolva o uso de cartões corporativos seja investigada a fundo. Mas não se pode esquecer que esse caso dos cartões é um problema de descontrole administrativo da máquina da União não só no atual governo. É um problema pontual, envolvendo alguns funcionários, que os nossos adversários utilizavam para transformar em uma crise política do governo do PT. Querem carimbar no PT e em Lula uma questão administrativa, o que é um erro. Como seria um erro se tentássemos carimbar no PSDB erros do governo FHC no uso de cartões. Esse perío-do no governo nos ensinou que devemos dar o peso e o tom certos às coisas, sob pena de nossa retórica política se voltar contra nós mesmos. Isso não significa impunidade. Mas nunca devemos pegar uma situação estrutural e administrativa, que tem de ser corrigida, e transformá-la em uma crise. Esse comportamento leva a generalizações do tipo "todo mundo é igual". E nem todo mundo é igual na política.
Veja – Mas não são as práticas dos políticos brasileiros, a sucessão de escândalos em todos os partidos, que levam a essa generalização?
José Eduardo – Estou convencido de que a questão da ética e da falta de dimensão republicana de separar a coisa pública da coisa privada é o principal problema brasileiro da atualidade. Não é uma questão nova. Desde a chegada de Cabral até hoje, a distinção entre o público e o privado não existe. Não é à toa que se consolidaram frases como "Rouba, mas faz". Isso traz um viés perverso de dizer que todo político é ladrão, como se fosse da genética da classe política se apropriar da coisa pública. Quando se diz que todo político é ladrão, não se faz uma denúncia, mas se legitima o crime. Há muita corrupção, mas, de 1988 para cá, criaram-se novos mecanismos de controle da administração pública. Mecanismos de transparência como a liberdade de imprensa e o trabalho do Ministério Público permitiram que situações que existiam e estavam escondidas viessem à tona. Hoje há mais mecanismos para detectar a corrupção. Quanto mais um governo incentiva a transparência, mais exposto ele está.
Veja – Com esse discurso, o senhor quer dizer que não há corrupção no governo Lula? Como membro da CPI dos Correios, o senhor acha que o mensalão existiu ou compactua com a visão de colegas de partido de que foi tudo um complô das elites contra o governo Lula?
José Eduardo – Eu tento evitar conflitos semânticos. E a palavra mensalão pode ter vários sentidos. Naquele caso, eu não tenho dúvida de que houve situações de ilegalidade com a destinação de recursos financeiros de forma indevida a aliados políticos. Não tenho a menor dúvida.
Veja – O senhor não está minimizando muito o que aconteceu?
José Eduardo – Vou ser claro: teve pagamento ilegal de recursos para políticos aliados? Teve. Ponto final. É ilegal? É. É indiscutível? É. Nós não podemos esconder esse fato da sociedade e temos de punir quem praticou esses atos e aprender com os erros.
Veja – O senhor já teve sérias divergências com o ex-ministro José Dirceu. Hoje, mesmo depois de ter sido cassado e denunciado, ele ainda é um dos mais influentes membros do PT. Essa influência não é nefasta para o partido?
José Eduardo – Posso falar isso com bastante tranqüilidade porque sempre tive muitas divergências com o José Dirceu. Mas é inegável o papel que ele teve na construção do PT, no combate à ditadura, na chegada de Lula à Presidência. Essa história não se apaga. É natural que tenha uma influência grande no PT.
Veja – O senhor é a favor da anistia política para ele?
José Eduardo – Há um processo no Supremo Tribunal Federal contra Dirceu. Ele próprio diz que espera ser absolvido no Supremo para dar início ao processo de anistia. É uma postura legítima. Agora, com muita franqueza, no processo de cassação do Dirceu, olhando as provas, não havia motivos para a condenação.
Veja – O PT fez uma festa para celebrar seu 28º aniversário. O que há para comemorar e o que há para se envergonhar na história do partido?
José Eduardo – Temos de nos orgulhar de ser o maior partido de esquerda da América Latina. De termos dirigido grandes prefeituras e inovado a história administrativa brasileira com projetos como o orçamento participativo. De termos administrado estados importantes. E de termos elegido o primeiro presidente da República vindo da classe trabalhadora. É evidente que existiram equívocos na nossa história. O principal é o fato de alguns dirigentes, por um pragmatismo equivocado, terem esquecido que a questão ética é indispensável na construção de nossas bandeiras. Isso nos trouxe muita dor, muito sofrimento, muito desgaste.
Veja – O senhor acha que o PT deve ter candidato à sucessão de Lula? Ou pode apoiar alguém de outro partido, como Ciro Gomes ou Aécio Neves?
José Eduardo – Seria absurdo para um partido com a dimensão do PT, que tem o atual presidente da República, renunciar a priori a uma candidatura presidencial. Seria uma demonstração de fraqueza incompatível com o que o PT tem de história política. O PT tem de lutar para ter o candidato da aliança à Presidência, mas sem ignorar que os outros partidos também têm o direito de fazê-lo. Diante dessa realidade, cabe a nós respeitar os aliados, não tratá-los com autoritarismo e buscar construir uma candidatura comum. De preferência, do PT.
Veja – Em duas capitais – Belo Horizonte e Vitória – há negociações para alianças entre o PT e o PSDB nas eleições para prefeito deste ano. O senhor defende essa aproximação?
José Eduardo – A agenda eleitoral brasileira, com disputa a cada dois anos, cria falsas polarizações e distanciamentos que talvez não devessem ocorrer. Mas a grande verdade é que, no atual quadro, os principais antagonistas do PT são o PSDB e os Democratas. Isso não pode ser desprezado na formulação de alianças. É muito difícil aceitar uma aproximação com esses partidos, que serão nossos principais adversários em 2010.
Veja – Quem deve ser o candidato do PT à prefeitura de São Paulo?
José Eduardo – A ministra Marta Suplicy. O PT tem de usar os nomes que mais fortalecem o partido nas grandes cidades. Em São Paulo, a Marta reúne condições de ganhar as eleições. Temos de convencê-la a ser candidata. Mas é legítimo que ela não queira. Se não quiser, há outros nomes, como o meu.
Veja – O presidente Lula será o principal cabo eleitoral do PT? Quais os pontos fortes do governo dele?
José Eduardo – Sem dúvida, Lula será nosso cabo eleitoral mais importante. Ele conseguiu fazer um marco na história política brasileira que é o combate à exclusão social. Outro marco é a conquista da estabilidade econômica, que permite ao governo atuar fortemente na busca do crescimento.
Veja – Quais os pontos fracos?
José Eduardo – Obviamente, o governo Lula cometeu erros. O principal foi a falta de um investimento sério na reforma política. Nosso sistema eleitoral é hipócrita, promíscuo, causa corrupção. É um sistema que enfraquece os partidos, que torna insuperável as relações fisiológicas e clientelistas para a conquista de maioria no Legislativo pelo Executivo. É difícil que ainda saia alguma reforma nestes últimos três anos de governo, mas o PT não pode abandonar a idéia. É preciso procurar diálogo com os partidos da base e da oposição na busca de um grande esforço pela reforma política. Chegou a hora de termos um pouco mais de maturidade, que nem sempre a classe política tem, para pensar um pouco mais no estado brasileiro do que em nossas disputas políticas.
Veja – Com esse sistema que está aí e a sucessão de escândalos, ser político hoje é motivo de orgulho?
José Eduardo – As pessoas entram na política por idealismo, por vaidade, por carreirismo e alguns até pela perspectiva do enriquecimento. Enquanto esse sistema prevalecer, aqueles que entram buscando agir de forma séria sofrem um ônus pessoal tão grande que vão deixando a política. É triste se comportar com lisura, com ética, e passar numa praia e ouvir: "Ô, mensaleiro!". Lembro que, certa vez, cheguei em casa uma noite e minha filha, então com 7 anos, me perguntou, chateada: "Pai, nosso dinheiro é roubado?". Fiquei chocado. "Como assim, minha filha?" "Na escola, disseram que político é ladrão e que você rouba." Por essas e outras, cada vez mais vejo pessoas honestas saindo da política. E cada vez mais tende a aumentar a participação de pessoas desonestas, do crime organizado, de setores sem nenhum compromisso com o interesse público. Sem a reforma política, os éticos correm o risco de ser derrotados definitivamente pelos desonestos.
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