Dalva do Nascimento mais se aproxima do avesso de uma candidatura. Ela subestima suas capacidades, não faz campanha, passa longe das promessas, nem sonha em eleger-se, identifica-se com o passado e aferra-se à ideologia, fiel ao mesmo partido há quase oito décadas. E, para o cúmulo do inusitado, é, aos 92 anos, a candidata mais idosa das eleições de 2010, conforme estatísticas divulgadas pelo Tribunal Superior Eleitoral.
Vencida pela insistência do PCB, ela aceitou concorrer a segundo suplente de senador, repetindo sua estreia eleitoral de 2006. "Em obediência ao meu partido, mas eu nunca quis ser nada, meu senhor. Eles pelejaram", garante, em conversa com Terra Magazine - "Não é a Globo não, né?".
Porém, Dalva encontra motivos para a empreitada: "Para mostrar aos brasileiros, para mostrar o nacionalismo, para mostrar a brasilidade". Vitória, não cogita. "Nããããão, não estou pensando isso não. É só o susto na direita. Está tudo apavorado, com medo. Já pensou se Ivan Pinheiro ganhar, hein?", pesca o nome pecebista entre os nove atuais presidenciáveis, para, em seguida, admitir que não há possibilidade de sucesso dele: "Nenhuma, brincadeira isso".
Ainda assim, ela crê que vale a pena: "Não tem (chance), mas, para atrapalhar o Serra, temos, né? E a esquerda tá dando susto na direita. Eles têm que mudar, têm que ver que a esquerda não tem homens incompetentes como eles pensam. Porque eles pensam que comunista é só gentinha".
Nascida em 2 de julho de 1918, na mineira Prata, Dalva cresceu na vizinha Uberlândia. Encantou-se com leituras socialistas na adolescência, sob ideais de reforma agrária, educação e saúde para todos, influenciada por amigos e pelo irmão Zé do Garça, que a conduziu ao PCB. Para filiar-se, aos 15 anos, precisou cumprir uma missão ditada por médico comunista, ainda mantida em sigilo, cerca de 80 anos depois. "Ah, não conto. Ah, eu não quero dar nome".
Foto de divulgação de Dalva do Nascimento no site do TSE
Embora mantenha-se completamente atualizada pelo noticiário, Dalva exala um singelo anacronismo, mas por convicção. "Não nos enganamos porque hoje, amanhã ou depois de amanhã, depois que eu morrer, o socialismo será o vitorioso. Se Deus quiser. Dentro da dialética, né? Porque Deus, pra mim, é a natureza. Quem é que viu Deus a não ser pela criação Dele? Vimos Jesus, o maior comunista da Terra", prega.
O que ela duvida é da recente declaração atribuída a Fidel Castro de que o modelo econômico cubano já não serve ao próprio país. "Ah, ele não falou nada disso. O jornalista americano foi que não entendeu. Ah, ele não ia falar aquilo não. Ah, que é isso? Um país que não tem analfabeto... Tem gente passando fome porque os coitados não têm direito de comprar, de comerciar com ninguém (devido ao embargo)", argumenta. E lamenta a decadência do apoio soviético: "Calamidade o que esse (Mikhail) Gorbatchev fez com o regime da Rússia. Foi uma barbaridade".
Ela, entretanto, entende que a política se modificou. "O tempo muda. Não é aquele partido passado. E eu fui criada no verdadeiro partido", diz. "O interesse do partido, não resta a menor dúvida, é a melhoria do povo", resgata a tese aparentemente desprezada. "O PT é imenso. Mas por quê? A troco de cargo. Não quero isso não".
A senha
Solteira, sem filhos naturais, Dalva adotou Nazira, graduada em Letras e recém-aposentada, outra pecebista. Sua irmã Maria das Dores, de 94 anos, também milita. Não à toa, a residência delas ainda recebe reuniões do partido no Distrito Federal.
"Em Uberlândia, nossa casa era casa de guerra. Era para receber os companheiros. Ele chegava, batia, dizia a senha para entrar, dava o nome de guerra", rememora Dalva, que guarda em segredo a palavra mágica. "Não dou não, eles podem estar usando por aí... Sou muito precavida, adoro meu partido. Fiquei jovem dentro dele. Estou envelhecendo, eu não senti a velhice".
Suas referências etárias são bastante particulares. Ela afirma, por exemplo, que sua mãe "morreu cedo, ia fazer 85 anos, a irmã dela morreu com 108". Cada uma teve oito filhos.
Os maiores percalços da idade maltrataram Dalva só recentemente. "Na primeira quinzena de abril, no ano passado, sofri um derrame. Na segunda quinzena, já estava de bengala, pegando ônibus. Este ano, sofri outro pior, quase não posso andar sozinha", conta, sempre se desculpando por eventuais problemas de audição e fala, apesar de se comunicar perfeitamente. Ela também avisa que está "um pouco esquecida", mas mostra-se completamente lúcida, lembra-se de detalhes, datas e fatos históricos com exatidão.
É minuciosa sua reconstituição de encontros com Juscelino Kubitschek, então presidente da República. "Em 1958, ele passando por Uberlândia, num sábado, eu parei o carro dele, abri os braços na frente do jipe. Ele parou, desceu e veio conversar comigo, me convidou para vir a Brasília, que estavam fazendo. Eu falei que não, que minha mãe não ia deixar", narra.
Na segunda vez, ele a persuadiu. "Fui trabalhar pro PSD (Partido Social Democrático), acertei as contas direitinho, ele passou lá outra vez e lhe falaram: 'Temos uma nova contadora'. Eu estava lá para apresentar as novas contas, ele pegou no meu braço e disse: 'Menina, vamos comigo para trabalhar no meu escritório'. Eu disse pra ele: 'Ah, presidente, minha mãe não deixa. Mas eu vou, o senhor pode esperar que eu vou'."
Por causa dos "ordenados baixos" no Triângulo Mineiro, ela resolveu aceitar o convite de um amigo e migrou para o Planalto Central. "No dia 26 de julho de 1960", crava. "Tá tudo guardadinho na cabeça". Quando chegou, era uma dos três únicos contadores da capital federal.
Dalva trabalhou até os 81 anos, somando 56 na área de contabilidade. "Atualmente, não sou nada, estou curtindo doencinha, né?", lamenta. Na época de estudante, lavava roupa para aumentar a renda familiar. "Tenho muito orgulho disso".
Somente em 1989, ao pendurar de vez a calculadora, ela passou a se dedicar mais à política. "Eu não me entreguei toda pro partido, aqui em Brasília, antes dessa data".
Seus compromissos não acabaram. "Dia 17, vou a um congresso no Rio Grande do Sul, a Cobap (Confederação Brasileira de Aposentados e Pensionistas) faz questão de me levar", anima-se. "Sou tesoureira do Partido Comunista Brasileiro e presidente fiscal da associação dos aposentados".
Vergonha
Os recentes escândalos envolvendo o governo e deputados do Distrito Federal não escapam dos comentários da candidata nonagenária. "Na capital da República, a gente ver uma vergonha desta...", indigna-se.
Ela mesma muda o rumo da prosa: "Que tal aquelas prisões lá no Amapá, aonde o José Sarney foi buscar eleitores, hein? Ah, estou rindo à toa, estou gostando. A mãozinha dele andou por lá. É nestas coisas que a gente tem que prestar atenção".
O governo Lula lhe causa certa divisão. "(O País) melhorou um pouquinho pro operário, não vou falar que não. A inflação acabou. A dívida externa está quase paga, ainda tem um rabinho. De fato, a pobreza diminuiu um pouquinho no Brasil, tem muita gente que deixou de ser pobre. Graças ao Lula", analisa.
Outros aspectos também balizam suas opiniões. "O Brasil nunca esteve tão bem internacionalmente como está. E mesmo aqui dentro. A Petrobras, que beleza! A Vale do Rio Doce, apesar de Fernando Henrique ter vendido metade das ações. Petrobras também, quase que ele privatiza. O Lula, não; ele é nacionalista".
Para Dalva, é real a ameaça do imperialismo americano. "A Colômbia está se tornando uma praça igual a Israel, aqui na América do Sul. Contra quem é isso? Contra a Venezuela e o Brasil".
Porém, ela preserva uma distância do elogiado presidente. "Não, Lula não se diz esquerda. Não. Ele governou, o tempo todo, em cima do muro. Não nego parte do governo dele. Não está fazendo nada por nós, aposentados, por exemplo. Collor começou a nos destruir, e ele conservou. Fernando Henrique nos chamou até de vagabundos", expõe suas mágoas.
E este é um assunto fundamental a Dalva. "Aposentei-me em 7 de junho de 1971. Com sete salários (mínimos). Um bom salário, mas muito menos do que antes. Ora, nesta idade de 92 anos, recebendo isso, eu viveria bem. Não viveria com tanto sacrifício como passei numa época da vida", reclama.
A experiência de contadora lhe permite questionar as condições laborais no País. "Criou-se o Fundo de Garantia pra quê? Pra derrubar o tempo de serviço dos trabalhadores", brada a pecebista. "A CLT (Consolidação das Leis Trabalhistas) precisa de uma reforma, mas não destruindo os direitos do trabalhador. Está uma verdadeira escravidão. O ranço da escravidão não acaba. O trabalhador do Brasil é muito sacrificado. E onde já se viu criança trabalhando? Quando isso vai acabar?".
Dalva, aliás, além de descender de escravos, conviveu com vários negros libertos em Minas Gerais. Sente saudade daquele núcleo: "Era um verdadeiro comunismo". As lembranças da infância resistem. "Tenho na minha cabeça até hoje algumas coisas dos cantos deles. Aquelas paneladas de comida. Era uma beleza".
Quando foi registrada, "no tempo da escola, aos 12 anos", ela recusou sobrenome de "dono de escravo" e escolheu se chamar "Dalva do Nascimento", embora os irmãos sejam "Andrade".
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